Conta Comigo! A Artista

Conta Comigo!  A Artista

Por Michele Machado Fernandes

Michele Fernandes
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Telas e mais telas na sala de artes, a maioria em branco. Três com desenhos de frutas. Uma com uma cornucópia inacabada. Agora era a tela em branco desafiando a criatividade de Isadora. O braço ainda dolorido. Teria quebrado? Talvez se fizesse diferente e pintasse com a mão esquerda, pudesse desenhar algo novo e menos óbvio.

Pensou no sonho que teve durante a noite, quando adormeceu depois de tomar um analgésico tão forte que a deixou com a fala arrastada. Ela caminhava por uma floresta. Por lá, se sentia em segurança. Seguia cantarolando. De repente, um som feroz. Olhou tranquilamente na direção onde alguns arbustos se movimentavam. Observou ser um lobo. Não sentiu medo. Colocou uma coleira nele e seguiu o resto do caminho conduzindo o animal por uma guia. 

Isadora prendeu os cabelos castanhos com um lenço para que não se sujassem com a tinta. Pousou o pincel na paleta. Diluiu usando a sua mão mais sã, porém mais desajeitada. Conseguiu obter um novo tom usando vermelho, amarelo e preto. Surtiu um novo matiz. Passou trepidamente o pincel na tela até então intacta. A cor resplandeceu, brilhante e viva. 

Riscos aleatórios, por que sou tão ruim em tudo o que faço? Pinceladas sem composição, por que não consigo agradar a ele? Retas errantes, por que não sou boa o bastante?

Parou.

O braço machucado latejava. Olhou a pintura. Tinha transformado aquela cor tão expressiva num aglomerado amorfo. Você sempre estraga tudo! Foi o que Celso disse a ela junto ao golpe que feriu o braço direito.

Isadora, de olhos fixos na obra, deu um passo para trás. Aquele monte de pinceladas parecia ter se organizado. Assumiu uma forma imprecisa, mas era possível, com um pouco de esforço, visualizar ali três mulheres, um lobo e um borrão avermelhado. Um pouco mais satisfeita com a sua arte, a pintora saiu do cômodo esperando que a tinta secasse.

Isadora retornou na manhã seguinte, quando lágrimas vertiam dos seus olhos. Foi apenas uma briga sem agressão. Você é frágil demais. Celso falou e ela acreditou. Uma breve olhada para a tela pintada no dia anterior interrompeu os seus pensamentos. As pinceladas imprecisas pareciam ter sido substituídas por imagens realistas. Havia ali três mulheres: uma ruiva, uma loira e uma de cabelos negros. As três em torno de uma fogueira. O cenário era composto por muitas árvores. Árvores e um lobo. O lobo uivava. Isadora tinha certeza de que havia escutado o uivo. 

A artista passou a manhã contemplando a obra. Enquanto admirava a arte por ela concebida, se esquecia de Celso e do quanto ele foi desagradável apenas por ela ter quebrado acidentalmente a sua caneca preferida, enquanto a lavava, de modo desajeitado, só com a mão esquerda.

Foi apenas no dia seguinte que Isadora, sentada no chão a contemplar a tela, se deu conta de que havia um ângulo em que, olhando a pintura, as mulheres pareciam girar em torno da fogueira. Talvez fosse uma dança. Uma dança. Um fogo. Um uivo. Uma música. Tum-tum, tum-tum. Sim, havia uma música que tocava. Tum-tum, tum-tum. Eram batidas de tambor, semelhantes a batidas do coração, num ritmo que a pintora tentou reproduzir batendo com uma régua de madeira no pé do cavalete. Tum-tum, tum-tum.

De repente, a porta da sala de pintura se abriu. Querida, desculpa eu ter gritado contigo! Celso soltou as palavras com sinceridade, um olhar terno, algo que havia encantado Isadora quando os dois se conheceram na terapia em grupo. Ela se ergueu do chão. Ele ajudou com gentileza, tomando cuidado para não tocar no braço ferido. Deu um leve beijo nos lábios dela. Saíram do cômodo, enquanto o marido pedia que ela passasse o seu uniforme do trabalho.

Logo mais, Isadora retornou com muita inspiração pensando em dar novos toques na sua obra. Parou de repente diante do cavalete. O seu entusiasmo se desfez. Olhava de novo a tela pelo ângulo em que nada passava de um esboço com uma cor desbotada. Com muita decepção, pensou que não fazia nada certo mesmo. Uma voz vinha à sua cabeça. Era a voz de Celso falando do seu trabalho. Isso não significa nada. Não leva a nada. Não traz dinheiro. Você só perde o teu tempo com esses desenhos mal feitos. Você não é uma artista de verdade.

Num golpe de raiva, chutou o cavalete, tudo desabou, a tela foi ao chão, caiu a mulher do cabelo vermelho, a do cabelo preto, a do cabelo loiro, o lobo, a fogueira. O fogo pintado na tela tocou um pano umedecido em solvente inflamável. Uma chama alta dançou perto de Isadora. 

Música, dança, vozes. 

Vem com a gente, Isadora. Quem são vocês? Eu sou Bárbara, era a mulher do cabelo vermelho. Eu sou Aurora, era a loira. Eu sou Salomé, falou a de cabelos negros. As batidas de tambor. Vem conosco, Isadora, aqui somos nós que controlamos tudo. Tum-tum, tum-tum. Vem conosco, aqui podemos fazer as coisas de que gostamos. As batidas do coração. Vem conosco, aqui é permitido nos expressar. Tum-tum, tum-tum. Vem conosco, seja livre como nós. 

A grande chama começou a tomar conta do cômodo. A casa de Isadora incendiou. Celso chorou muito ao retornar do trabalho e saber de todas as perdas. Entre as poucas coisas que puderam ser resgatadas intactas, uma obra da artista que o marido nunca tinha visto antes. Nele havia uma mulher de cabelos vermelhos, uma mulher de cabelos loiros, uma mulher de cabelos negros e uma mulher de cabelos castanhos. Elas pareciam dançar felizes ao redor de uma fogueira numa floresta. Sem lobos.

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