A partida de Lygia Fagundes Telles

A partida de Lygia Fagundes Telles E Suas Meninas Livres Em Um Mundo Acorrentado

A partida de Lygia Fagundes Telles E Suas Meninas Livres Em Um Mundo Acorrentado é artigo de Michele Machado Fernandes em sua coluna semanal.

 

A partida de Lygia Fagundes Telles
Lygia Fagundes Telles – Créditos da imagem: Ana de Hollanda – Ministério da Cultura

Uma perda para o cenário da cultura nacional, o falecimento da autora Lygia Fagundes Telles no primeiro semestre deste ano fez os olhares dos amantes dos livros voltarem-se a uma mulher que deixou sua marca muito bem impressa em nossa literatura. Eu havia, pouco antes de sua partida, adquirido o livro “As Meninas”, uma das suas obras mais marcantes e, finalmente, consegui realizar a leitura. Vejo as escritoras do século XXI como suas cúmplices nesse processo de escrever para libertar-se.

Uma breve biografia:

Nascida em São Paulo, em 1918 (Sim, ela viveu por 103 anos!), Lygia formou-se em direito, casou-se duas vezes e teve um filho. Em 1938, publicou seu primeiro livro, “Porão e Sobrado”. Sempre bem aclamada pela crítica e logrando diversas premiações literárias, atingiu o ápice de sua carreira na década de 70. Foi nesse período que Lygia publicou suas obras de mais destaque: “Antes do Baile Verde” (1970), “As Meninas” (1974) e “Seminário dos Ratos” (1977).

Em pleno século XX, Lygia Fagundes Telles rompeu com o paradigma de que mulheres não têm vez na literatura. Ela teve sua obra traduzida para cerca de oito idiomas, ingressou na ABL (1982), ganhou prêmios importantes como Jabuti (várias edições) e Camões (2005) e, ainda, foi a primeira mulher brasileira a ser indicada ao Nobel de Literatura (2016).

Discorrer sobre o longo e premiado currículo da autora, no entanto, não transparece nem de longe o significado de seu legado para as escritoras da atualidade. Lygia é referência. É a prova de que podemos romper barreiras. É argumento para não desanimarmos diante de limitações ou imposições protetoras do patriarcado.

 

Meninas ou mulheres?

“As Meninas”, Lygia Fagundes Telles. Edição Companhia das Letras.

No livro “As Meninas”, Lygia nos apresenta três protagonistas jovens adultas que vivem em uma pensão zelada por freiras. Elas têm em comum, além da moradia, o fato de estarem cursando a faculdade e de estarem distanciadas de sua família. Cada uma dessas meninas tem uma personalidade bastante peculiar, origem diversa e forma de pensar bem delineada.

Lia é uma militante comunista, que conspira contra o regime militar implantado após o golpe de 64. Ela mostra uma visão esquerdista e vê a sexualidade como uma forma de manifestar sua liberdade. Parece ser a mais sensata entre as três amigas, contrariando seu estilo de vida subversivo. Talvez essa seja uma forma de Lygia mostrar que, naquela época, esta postura política fosse o jeito mais lúcido de se posicionar socialmente.

Lorena é a personagem sonhadora. Afirma ainda ser virgem e apaixonada por um homem casado que jamais liga para ela. Vive contando a história dos irmãos gêmeos Rômulo e Remo e sua tragédia, quando um dos irmãos assassinou o outro. Filha de uma mãe cuja personalidade se alterna entre o psicótico e o promíscuo, essa personagem também é a mais abastada financeiramente, fazendo o tipo “pobre menina rica”.

Ana Clara é a personagem mais complexa e talvez seja a mais presente no enredo. É, entre as três, a única advinda de uma família pobre e disfuncional. Em suas digressões, rememora várias situações de abuso durante a infância, explicando seu comportamento altamente sexualizado, porém sua beleza é sua arma para ascensão social e, ao mesmo tempo, sua prisão. Ana Clara, ou Ana Turva como geralmente se autodenomina, pretende casar-se com um homem rico de quem de fato não gosta, mas está disposta a ter de enfrentar até mesmo o sentimento de asco para poder sair da miséria. Ela é apaixonada por Max, seu amante ou talvez gigolô, também seu parceiro no uso de drogas.

As três meninas juntas revelam três versões das mulheres dos anos 70, três possibilidades de opressão ao gênero feminino e três maneiras de se tentar fugir de um mundo que lhe é adverso.

 

Entrando na mente das meninas

Lígia Fagundes Telles, já conhecida por usar técnicas narrativas que imprimem um forte fluxo de consciência e discurso indireto livre, em “As Meninas”, consegue ir ainda mais além. Ao ler, senti a necessidade da autora de entrar na mente de cada uma das protagonistas para virar do avesso todas as possibilidades de vislumbrar o interior de uma mulher.

Nas primeiras páginas, a imersão ao livro é difícil e se há de insistir um pouco para que a leitura flua bem. O narrador em terceira pessoa evade frequentemente dando espaço a outra narrativa direcionada aos pensamentos das meninas. Nesses momentos, prevalece a primeira pessoa e é preciso estarmos atentos para decifrar quem é a protagonista da vez. Com o avançar das páginas, no entanto, vamos conhecendo tão a fundo a personalidade de cada uma delas ao ponto de ser possível reconhecer de quem se trata aquele trecho mesmo sem que tenha sido mencionado algum nome.

A partir daí a narrativa flui. Eu diria mais: quando chegamos nesse ponto, significa termos compreendido a mente de cada uma dessas mulheres-meninas, fato que nos prepara para um desfecho incômodo, quase surreal, o qual nos arrebata, destrói e ajuda a refazer conceitos.

 

Lygia quebra correntes:

Se para as meninas protagonistas a liberdade se relaciona à forma como cada uma lida com sua sexualidade, conforme minha leitura, para a autora, essa libertação precisa estar presente também nos artifícios textuais. Nesse sentido, Lygia faz o que quer com seu texto, elevando a um novo patamar recursos utilizados em obras anteriores.

As temáticas são assuntos que não poderiam vigorar na sala de estar das famílias puritanas da época. Liberdade sexual feminina, independência da mulher, divórcio, homossexualidade entre outros tabus são falas constantes no livro.

A própria técnica anteriormente citada, uma mistura de monólogo anterior com fluxo de consciência ou, para quem preferir, discurso indireto livre (Realmente, é difícil explicar o que a autora está fazendo.) traz como efeito uma transgressão à regra de que devemos manter a escrita sempre em primeira ou em terceira pessoa.

As transições de cenas também são inesperadas, não dependem de uma nova ambientação, de mudança de capítulo ou de explicitação sobre qual das meninas está sendo focada dessa vez. Talvez esse seja o maior desafio para o leitor, pois é necessária não apenas atenção, mas também um reconhecimento de todas as pistas já deixadas anteriormente. Faz sentido, nesse caso, pensar que as primeiras páginas com longos diálogos sejam uma preparação para o leitor entender quem é quem nesse enredo.

Faz muita diferença a bagagem de experiências literárias trazidas pelo leitor, sua faixa etária, ter lido outras obras da autora e até mesmo buscar maiores informações sobre a obra. O leitor acaba sendo parte do livro, um elemento-chave capaz (ou não) de alinhavar todas essas informações entregues de presente (mas não de bandeja) pela autora. É preciso ser ativo, atento e capaz de construir as lacunas deixadas.

Essa característica, assim entendo, é uma consequência da tentativa de a autora exprimir liberdade em sua escrita, característica presente até mesmo no rompimento com algumas regras de pontuação. Diferentemente da ousadia de Saramago, por exemplo, que delega ao leitor a tarefa de descobrir o ritmo de sua escrita, Lygia deixa escapar uma vírgula aqui, um ponto ali e faz o leitor entrar no ritmo que ela quer.

 

A liberdade subversiva das mulheres

Nós, escritoras mulheres, já descobrimos o quanto é libertador escrever. Apenas o fato de tirarmos nossas dores internas para jogar ao papel já nos alivia das pequenas (ou grandes) barreiras diárias que necessitamos, a todo momento, desviar, romper ou, lamentavelmente, esbarrar. Levar nossa escrita ao mundo é um desafio ainda maior, vindo de forma entrelaçada com o sentimento de não estarmos sozinhas e podermos atingir outras pessoas por meia de nossa palavra.

Lygia Fagundes Telles vai além e nos mostra que a escrita subverte todo e qualquer sistema: social, político, linguístico, estilístico, etc. O próprio fato de uma mulher escrever em um tempo de repressão (e, no meu ponto de vista, ainda não saímos dessa fase) é um movimento de subversão. Assim, podemos entender sua obra como um convite a ir cada vez mais além, a romper padrões impostos e a buscarmos nossa real liberdade. Era a autora uma menina livre em um mundo acorrentado.

Lygia nos deixou em 03 de abril de 2022 e foi exatamente nesta data que ela se eternizou.

1 thought on “A partida de Lygia Fagundes Telles

  1. Monique Bonomini says:

    Demais sua análise. Parabéns! Foi o primeiro livro de Lygia que li e fiquei muito intrigada com este jeito peculiar dela narrar. Há quem diga que este começo intrincado foi um estratagema de Lygia para fugir do censor, já li entrevistas dizendo que o censor não terminou de ler o livro porque o achou muito chato. Rs. E graças a isso ela conseguiu dar vida à Lia.

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